terça-feira, 24 de maio de 2011

A mártir de Guaraciaba do Norte





A ladeira das pedras, que serpenteia entre Guaraciaba do Norte e Reriutaba, noroeste do Ceará, é um lugar de passagem. Desses onde tudo cumpre seu destino: a mata desabrocha ao toque do tempo, as quedas d’água brincam de esconde-esconde nas entranhas da serra, os pássaros ensaiam sinfonias, Eronilda espera Joaquim voltar do roçado, e espera o dia de partir, e espera a chuva. Na ladeira das pedras, a finada Isabel também cumpriu seu destino.
Foi assim, dizem, Isabel Maria da Conceição(1901-1929), que trazia a brandura e a formosura de cada nome seu, casou-se com Antônio Raimundo Nonato da Silva, reforçaram as narrativas que costuram o marítimo. Um dia, afoitou-se: alterando um pouco a rotina, cortou os cabelos.
Raimundo cismou com a novidade. Imaginou uma traição e acreditou mortalmente que Isabel havia cortado os cabelos para satisfazer o amante. Em pleno desvario, armou-se com uma faca, pôs a cangalha no jumento, fez Isabel e o menino de carga e desembestou para os altos da ladeira grande. Encoberto pela serração daquela hora funesta, Raimundo esfaqueou Isabel até que existissem apenas os gritos e choro do filho que assistia à morte da mãe. Rebolou o seu corpo no chão da serra e sumiu pela serração.
Eronilda, 38, e Joaquim Araújo Damasceno, 40, se admiram ainda hoje do destino da finada Isabel. “O que impressiona a gente é essa história do cabelo, que provocou a morte”, repente, em coro, a tragédia “que os velhos contam”. O casal é um dos poucos que assentaram na Ladeira Grande, depois que a CE-257 abriu horizontes. Do alpendre de casa, avistam a “cruz da finada Isabel”, fincada no ponto onde imaginam que Raimundo martirizou a mulher.
A cruz sinaliza uma ermida que acolhe fotografias, ex-votos e promessas à finada. Curiosamente, entre os objetos deixados pelos devotos da popular “mártir de Guaraciaba do Norte”. Há muitas madeixas e prendedores de cabelo. Da cruz de Isabel se fez uma esperança, comum a inúmeras mulheres que convivem com a violência doméstica.
Dali a Reriutaba, a crença na finada Isabel se multiplica. Padre Emídio Gomes, vigário do município, até  concorda que a dona de casa se tornou ”uma santa canonizada pelo próprio povo”. Reconhecer o extraordinário no fato de o jumento, depois que Raimundo matou Isabel, ter trazido o filho do casal a salvo de volta pra casa, “uma criança de três anos e pouco, sozinho cerca de 30 quilômetros”.
Mas, ao invés de milagres, o padre prefere falar em libertação. Primeiro a libertação do sofrimento silencioso. “ O povo se identifica com aquele sofrimento e com o suspiro de liberdade que aconteceu... Ela foi um suspiro de liberdade diante de uma cultura machista”. E há uma libertação maior, que Isabel e os santos do povo significam. Na interpretação do padre Emídio, a religiosidade popular é o “espaço da liberdade onde o povo conversa com Deus sem precisar de intermediário”.    

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